Luís Magarinhos Igrejas
Galiza, Fevereiro de 2005
«As palavras,
como os pássaros,
voam sobre as fronteiras políticas»
DANIEL R. CASTELÃO (1886-1950)
Da fala e da escrita, Galiza Editora, 1983, p. 79
Nenhum país com aspirações e vontade de ser no campo da modernidade, pode construir um futuro com auto-estima e dignidade suficiente se não assume com honestidade e valentia intelectual os verdadeiros pilares que sustentam a sua identidade colectiva e as suas próprias origens como povo. Por isto é que hoje sabemos, portugueses e galegos, galegas e portuguesas, que somos partilhadores duma identidade cultural e linguística que nos define unitariamente. Muitos de nós, aceitamos já com poucas reservas, o facto de Portugal e Galiza terem em comum um passado histórico e proto-histórico conjunto, uma realidade geográfica e geológica própria e uma língua de influências milenárias que teimosamente segue sendo hoje a mesma. Alguns, conheciam as nossas características etnológicas e antropológicas ou o existencialismo saudoso que ontológica e diferencialmente nos define.
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Mas, poucos sabiam (ou sabíamos), que a ligação galego-portuguesa, a ligação portugalega, ultrapassa incluso estes elementos primordiais, que, de facto, seriam mais do que suficientes para tirarmos conclusões sobre nós mesmos e o nosso hipotético futuro como colectividade histórica. Mas, há algo mais, uma outra ligação que emerge por acima das fronteiras arbitrárias e invisíveis, e que torna mesmo inquebrantável e imutável tudo o anterior.
Uma ligação que tem a ver mesmo com a origem e significado das denominações que os nossos (nosso) povos têm recebido no decorrer histórico. Tem a ver com a origem e significado das palavras Portugal e Galiza.
Cale vs. Gal, ou a procura das origens
Uma primeira olhada leiga sob as palavras PortuGal e Galiza, permite-nos perceber de imediato a existência dum radical Gal conteúdo nos dois vocábulos. O que de imediato nos faz, pelo menos intuir, algum tipo de ligação etimológica entre as duas denominações. Aliás, a forma Gal, não é mais do que uma derivação latina do radical indo-europeu Cale (Calem segundo as fontes).
A origem da palavra Galiza (Calécia, Gallaecia), tem a ver precisamente com o radical Cale. Concretamente, com o localizado numa das áreas onde hoje se encontra a cidade do Porto. Mas, antes de abordarmos essa questão, seria bom aproximarmo-nos a algumas das analises que sobre a etimologia e origem linguística Cale se têm realizado.
Hoje sabemos, que a forma Cale, esteve e está, muito presente ao longo de toda a geografia europeia. Especialmente nas áreas geográficas onde perviviu ou pervive um substrato linguístico celta (ainda que se tem registrado também em outras línguas indo-europeias como o eslavo ou o albanês). Daí, por exemplo, que na Europa Atlântica (e não só) tenhamos encontrado denominações como Galia, Calais, Gales, Galatia, Gaia, Galiza ou PortuGal. Palavras, sob as quais, uma simples olhada, dá para ver que é o que têm em comum em relação à raiz Cale/Gal.
Estes povos proto-históricos partilhavam uma língua comum indo-europeia que alguns autores (Fuco O´Soer) relacionam com o goidelico, ainda existindo diversas ramas dentro dela, como seriam a gaelica (Irlanda, Escócia...), britônica (Cornualhes, Gales, Bretanha) e a galaico-lusitana (Galiza e Portugal). Esta última, virá logo a misturar-se com o latim após a ocupação romana.
Mas, o que nos atinge agora, é tentar sabermos qual é a origem exacta e significado de Cale dentro do corpus linguístico celta do que é originário. Para Fuco O´Soer a origem do termo (que logo dará lugar à forma latinizada Gallaecia) parte da Deusa mãe dos celtas Cal-leach, pois, segundo ele, era costume romana na altura nomear aos povos conquistados pelo denominação dos seus deuses. Isto dá, para lembrar-nos, que o nascimento da Calécia/Gallaecia como entidade política, produziu-se após a batalha do Douro e a posterior conquista romana. Para este autor, os celtas do Douro, virão a ser os Cal-laic-us (Calaicos) ou filhos da Deusa mãe dos celtas Cal-leach. Cuja referencia se tem encontrado numa inscrição na forma de Calaic-ia no lugar de Sobreira, perto do Porto.
Uma outra analise do radical Cale no âmbito das línguas célticas: Palomar Lapesa (1957) e Alberto Firmat (1966), liga este com o significado de «pedra», «rochedo», «duro», cuja expressão se adequa com rigor às características geológicas e graníticas da cidade, nomeadamente do morro da Sé.
Para Higino Martins (1990) o vocábulo pré-indo-europeu Kala, definido como «abrigo», «refúgio», passou à língua celta sob a forma Cale e com significação de «terra», «montanha». Para ele, o etónimo Calaico/a viria então a denominar ao «da terra», ao «do lugar».
Outras interpretações, menos consistentes desde o nosso ponto de vista, ligam a origem de Cale (vs Gal) com os galos ou gálatas. E mesmo há autores que atribuem a fundação de Cale, a uma expedição de galos chegados às terras do Douro através da Lusitânia. Mencionarmos também aos que como Pedro de Valdés ligam a origem da palavra com vocábulo grego Kalos, «fermoso», daí que Calécia significasse para este autor «coisa fermosa».
Cale e o nascimento da Galiza (Calécia/Gallaecia)
Segundo múltiplas interpretações, entre as que sugerimos destacar as de Mendes Corrêa (1933), A. Tranoy (1981) e Coelho da Silva (2000), a origem do nome da Galiza (Calécia/Gallaecia) dado pelos romanos (reforma de Diocleciano 284-288 d.C.) ao território político-cultural enquadrado no Noroeste penínsular, delimitado com a Lusitânia pelo rio Douro, é um caso de apropriação onomástica a partires dum topónimo que nomeava apenas o povoamento proto-histórico ou castro de Cale, localizado na área que compreende o Morro da Sé e o monte da Cividade do que hoje é a cidade do Porto. Lugar onde se estabelece a localização originária do primeiro povoamento humano que se tem registrado na cidade. A existência do castro ou cívitas de Cale, transmitido até os nossos dias pelas fontes clássicas (C. Plínio), permite-nos afirmar (concordando neste ponto com as interpretações de quase todos os autores que têm estudado esta questão), que este topónimo, deu nome ao etónimo Calaicos/as (habitantes de Cale), tribo que, além de distribuir-se em vários povoados proto-históricos nos arredores do que hoje é a cidade e a foz do Douro (Sanfins, Penafiel ou Vila Chã), contavam com um lugar de importância capital, devido ao valor estratégico na encruzilhada de caminhos, que na altura, vinha a supor o lugar onde hoje se encontra Morro da Sé e o monte da Cividade do Porto. C. Plinio, que definiria aos habitantes de Cale como Caleci/Galaicos, fez distinção entre estes, e os Lusitanos do sul do Douro.
Mendes Corrêa aposta por localizar o monte da Cividade (e o povoado de Cale) no outeiro enquadrado entre a Batalha e o lugar onde se hoje se encontra estação de São Bento junto com as ruas adjacentes (Cimo de Vila e da Madeira) que ligam esta área com o Morro da Sé.
Há autores que se têm decidido por localizar a cívitas/castro de Cale, e posteriormente o seu porto (Portu Cale), na margem esquerda, na margem sul, do Douro; no que hoje é Vila Nova de Gaia, mas, uma leitura sossegada das teses de uma e outra opção, leva-nos a aceitar que o Cale original só tem podido localizar-se na margem direita do rio.
Para Leite de Vasconcelos, a mais antiga referência a Cale, é a feita por Salústio no S. I a.C. Na qual se indica claramente, Cale ser uma cidade da Calécia, «cívitas in Gallaecia». Ora, a Calécia, como já foi dito, situava-se ao norte do Douro. Mesmo também Vergílio Correia identifica a cidade de Cale com o convento dos Brácaros, ao norte do Douro.
Segundo o que acabamos de afirmar, seria bom aclararmos mais uma vez como aponta Manuel de Sousa (2004), que o facto dos romanos terem dado o nome de Calécia/Gallaecia a todo o noroeste da Península Ibérica como uma das suas delimitações político-administrativas (neste caso o último e mais resistente território a ser conquistado), não quer dizer, como já comentámos, que toda ela fosse habitada pelos Calaicos. Pois na altura (S. I a.C.), existiam diversas tribos, que, mesmo partilhando um substrato étnico-cultural e um habitat comum, localizavam-se em diferentes populi em todo o noroeste.
Além dos Calaicos, as fontes escritas e arqueológicas, transmitiram-nos constância de muitas outras agrupações tribais, que, como os Gróvios (Baixo Minho), Ártabros (Artábria, ou área da actual cidade da Corunha e Ferrol), Célticos (Bergantinhos), Poemanos (Lugo), Brácaros (Braga), Caporos (Íria Flavia) ou os Quarquernos (Serra dos Gerês) entre outros, distribuíam-se em pequenas cívitas por toda a área do que logo virá a ser a Gallaecia. Mas só um desses populi, o de Cale, teria a sorte de erigir-se em topónimo fundador, e converter-se posteriormente, no nome da actual Galiza.
O porto de Cale: Portu Cale
Segundo aponta Coelho da Silva (2000) a «justaposição natural da cívitas [ou castro] de Cale e o seu porto, portus, poderão justificar a primeira referencia a Portu Cale», datada na segunda metade do século V d.C. e transmitida pelo Chronicon de Idácio. Um Portu Cale que nos atrevemos a localizar, quase com toda seguridade, ao pé da margem norte do Douro, no que logo virá a ser Ribeira do Porto.
Idácio, o cronista e bispo de Chaves (falecido em 472 d.C.), afirma textualmente Portu Cale estar situado «ad extremas sedes Gallaeciae» (na extrema da Gallaecia), que como se sabe, estando separada da Lusitânia pelo rio Douro, «Fluvius Dourus dividens... Gallaecia et Lusitania...» (Julius Honorius), exclui claramente qualquer hipótese de localização desse sitio na margem esquerda do rio.
Mendes Corrêa (1933) escreve que «havia uns 500 ou 600 metros a percorrer [desde Cale] até o Douro pela via natural de trânsito, nas margens do [afluente] Rio da Vila».
Para o grande arqueólogo portuense, o vale que se vinha a conformar desde a Sé e o monte da Cividade, até a beira do rio (o que hoje seria as rua das Flores e Mouzinho da Silveira), ligaria Cale com o seu porto na margem norte do Douro, estabelecendo-se Portu Cale, já na época romana (daí a origem latina do radical inicial da palavra), como porto de serventia para Cale.
Chegados a este ponto não faz sentido, como já afirmamos, que o porto de Cale se situasse do outro lado do rio, no castelo de Gaia, pois, o trajecto natural desde Cale até o Douro, vinha a encorajar-se através do vale marcado pelo rio da Vila até a actual Ribeira da cidade. «A Ribeira era o cais natural da Cividade sobre o Douro», afirma Mendes Corrêa (1933).
Portu Cale virá a nascer então como uma derivação natural das actividades de Cale para a beira do rio. Pois, era este, o processo geral da «pax romana»: o abandono dos lugares altos e abruptos dos habitats castrejo/celtas, e a migração para os vales, planícies e terras baixas.
Por isto é que só a partires do século V d.C. que começa a deixar de se falar de Cale como tal, e se iniciam as primeiras referências ao «porto de Cale» (Portu Cale). Topónimo que teria a sorte de erigir-se em nome do actual Portugal, como séculos antes, o Cale de Portu Cale, dera nome à Galiza.
Portugaliza e o futuro
O professor Armando Coelho tem sinalado recentemente que Portugal não pode ficar com uma história política que só é conhecida a partir dos limites do actual Estado: «há informações em termos de pervivencias que não são inteligíveis se nós fizermos a nossa história só até o começo da nossa nacionalidade ou até o começo da era romana. Temos que ir mais para trás». Afirmação com a que coincide David Santos Araújo quando disse que «Portugal não precisa procurar as suas origens num caldo nubloso e confuso onde todas as conjecturas são possíveis».
Por isto mesmo, e apelando ao respeito histórico, faz-se necessária a crítica do mito lusitanista que se tem erigido como grande conformador da identidade portuguesa até os nossos dias, mito que em certa medida, continua a reproduzir-se na actualidade no país.
Hoje sabemos com claridade, que o norte de Portugal; o território compreendido entre os rios Minho e Douro, nunca fez parte de nenhum marco histórico ou político lusitano, no entanto sim galego, o que não quer dizer que estejamos a estabelecer fronteiras onde não as houve. Mas sim podemos tentar recuperar a veracidade histórica a esse respeito. E se calhar, a melhor forma de ressarcir essa errada interpretação da história e do passado, seja, em primeiro lugar, tentando reconhecer essa galeguidade da parte norte do país, através da recuperação da memória e dos seus direitos históricos.
No ano 1998 celebrou-se em Portugal o referendo pela regionalização, onde por escassa margem, ganhou a opção que advogava pela continuidade centralista. Mas hoje, quanto já têm transcorrido uns quantos anos desde essa cita; são de novo, numerosas as vozes, que reclamam com força a necessidade de recuperar e implementar a ideia da regionalização. O mal-estar nas periferias, nomeadamente no norte, não deixa de acrescentar-se cada dia, agravado pelos desequilíbrios territoriais que o modelo actual tem propugnado.
Nesta ordem de coisas, a nossa proposta lançada desde a Galiza do norte ao País do sul, seria dirigida cara a ideia de tentar levar a termo um novo processo de descentralização, na linha do que estabelece a própria Constituição da República. Processo pelo qual, o norte do país (conformado pelas actuais províncias de Douro, Minho e Trás-os-Montes), fosse englobado numa só entidade regional autónoma de nome Galiza.
Esta nova Galiza portuguesa viria entroncar com a Galiza espanhola na actual Euro-região Galiza-Norte de Portugal, que ainda hoje se encontra na fase mais inicial do seu desenvolvimento, mas que conta com amplas potencialidades no contexto europeu e global. Uma Galiza reencontrada, que aliás, teria de confluir necessariamente com a Lusitânia e o seu povo no marco duma entidade superior portugalega. Uma Portugaliza desde Ferrol até Faro, o sonho de muitas e muitos.
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Source: http://agal-gz.org
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